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Venezuela: educação inclusiva e de qualidade
Por Luciana Bento
Ángel Linares conhece a fundo El Sistema – o conhecido programa de educação musical da Venezuela, baseado na formação de orquestras de crianças e jovens, fundado há 40 anos pelo maestro José Antônio Abreu.
O hoje chefe de eventos da direção executiva da Fundação Musical Simón Bolívar, ingressou no programa em 1981, aos 14 anos, e desde então tem testemunhado muitas histórias de superação e conquista.
Um deles, talvez o mais impactante, foi sua experiência como diretor do Núcleo Los Chorros – que funcionava em um centro de reclusão de menores. “Ali compreendi a minha responsabilidade e a importância do meu trabalho”, conta.
“Provavelmente aqueles meninos nunca chegariam a ser músicos profissionais, mas eu precisava mostrar a cada um daqueles 72 jovens e crianças que a vida te dá outras opções e possibilidades. Entendi que se apenas um destes meninos pudessem enxergar esta janela, meu trabalho já teria dado frutos”.
Angél, que também é músico de Tuba da Orquestra Simón Bolívar, falou com a Revista Tuhu sobre o funcionamento de El Sistema, da formação de professores e os pilares deste programa que hoje é referência mundial em qualidade e excelência, responsável por revelar um dos maiores maestros da atualidade, Gustavo Dudamel.
Em que método El Sistema se baseia?
Nossa metodologia se fundamenta na prática musical coletiva. Utilizamos metodologias já consolidadas, de diferentes linhas, e as aplicamos coletivamente, sempre tendo em vista o desenvolvimento do trabalho do grupo.
E qual seria a importância de um método unificado para implementar a educação musical em um País? Ele seria necessário?
Estabelecer uma metodologia unificada permite revisar os padrões e avaliar o desenvolvimento global dos alunos, dependendo do objetivo acadêmico proposto no processo educativo.
No entanto consideramos que a democratização da educação – musical ou não– se fundamenta muito mais na inclusão do que na unificação metodológica.
Um método único ajuda a dar forma aos processos acadêmicos, permite gerar e desenhar modelos de cada processo, adequar programas e estabelecer de metas com prazos determinados, de acordo com a quantidade de participantes.
Mas acreditamos que apenas a participação permite a pluralidade no manejo dos processos e do conhecimento, enriquecendo de maneira quantitativa e qualitativa o seu próprio desenvolvimento.
Sempre é importante explicar que – no caso de El Sistema – não se trata de um modelo massificador e sim um modelo inclusivo, que permite o acesso da maioria a processos formativos de qualidade, sem condicionantes econômicos e adequado a distintas realidades.
No caso da Venezuela, como foi o desafio de levar a educação musical às cidades e regiões do interior – e não apenas aos grandes centros? Como seria esta tarefa em um país de dimensões continentais como o Brasil?
Levar El sistema a cidades e localidades do interior do País foi um desafio presente desde a concepção do projeto. Não havia como pensar na possibilidade de ensinar música academicamente sem incluir os jovens do interior.
Nossa sugestão sempre será, independente do País e de suas dimensões, atender a cada região de maneira estratégica. Para isso é muito importante fazer um diagnóstico de seu potencial, tanto a nível docente quanto de infraestrutura. Apenas conhecendo a realidade de cada lugar, pode-se aplicar as medidas necessárias para o seu desenvolvimento.
Uma vez realizada esta análise, algumas as regiões com maior capacidade são priorizadas e a partir deles são criados centros de atenção que funcionam como satélites para cada um dos estados fronteiriços . Assim são armadas redes de atenção que devem ser consolidados de acordo com sua realidade e grau de desenvolvimento.
Como El Sistema atuou para capacitar os professores de música no País? Como está isto hoje?
A capacitação começou com um pequeno número de professores voluntários que se moviam semanalmente pelo interior do País para ensinar a massa de jovens e docentes ao longo do território nacional.
Neste processo, foram estabelecidos convênios com escolas de música já existentes para convencê-las do uso da prática orquestral como ferramenta de trabalho e desenvolvimento do ensino.
E como percebemos, desde o início, a necessidade de formar professores, à medida que os próprios jovens aprendiam um instrumento musical, nascia um educador em potencial, sobretudo para os níveis mais básicos.
Hoje esta capacitação é constante e o quadro docente se mantém nutrido com o Programa de Formação Docente, encarregado de manter a ação permanente dos grupos docentes e inovar nas linhas educativas e de programação – tanto no que diz respeito à parte musical quanto organizacional e administrativa.
Nem todos os estudantes vão ser músicos profissionais ou têm vocação para música. Como El Sistema lida com este público?
Definitivamente a música ajuda a educar os cidadãos e desenvolver o sentido humanista das crianças e jovens. O fato de uma criança jogar futebol ou qualquer outro esporte desde cedo não significa necessariamente que este jovem será um profissional deste esporte.
O mesmo se passa com a música mas entendemos que as práticas de atividades coletivas influenciam positivamente nas crianças e jovens, incentivando atitudes como perseverança, companheirismo, disciplina, técnicas de estudo, sensibilidade, responsabilidade, autonomia etc.
E definitivamente uma criança que desde cedo se envolve com estes valores vai exercer sua cidadania de forma mais plena. Penso que a sociedade é como uma orquestra, que precisa ter uma equipe que funcione em harmonia. Talvez para um país como o Brasil seja mais fácil compreender a partir do futebol, que é uma paixão nacional e também se exerce em equipe.
Como El Sistema opera na inclusão social de jovens?
Não existe um perfil de ingresso para as crianças e jovens em El Sistema e este é um fator determinante para a inclusão de meninos e meninas. Qualquer criança pode começar a tocar um instrumento desde que seja o seu desejo e seus pais o inscrevam em algum de nossos centros ou núcleos.
O único pré-requisito é querer participar e vemos, em grande parte dos casos, o envolvimento não apenas da criança que iniciou os estudos mas de outros membros da família.
Vários países, sobretudo da América Latina, criaram projetos inspirados em El Sistema. Vocês acompanham estes projetos? Existe uma iniciativa neste sentido no Brasil, na comunidade Santa Marta, no Rio de Janeiro. Como funciona este intercâmbio?
Existem várias iniciativas no Brasil que são afinadas com El Sistema e apoiamos o desenvolvimento de programas afins que busquem a participação coletiva de crianças para o desenvolvimento da música como ferramenta de inclusão e desenvolvimento social.
Mas cada país possui particularidades políticas, sociais e culturais que definem que ferramentas são executáveis para cada um. Para nós é vital que as aulas possam chegar até as crianças de maneira completamente gratuita.
Em sua opinião, qual o principal objetivo conquistado nos mais de 40 anos de funcionamento de El Sistema na Venezuela?
Podemos dizer que com o passar dos anos fizemos muito no que diz respeito à formação de jovens com maior consciência e participação social. Quando uma criança começa a apoiar academicamente os seus companheiros, ensiná-los a desenvolver o seu conhecimento, podemos afirmar que contamos com um futuro cidadão formador de valores, disciplinado e participativo.
Isto sempre será um ganho – não apenas para os que foram ajudados diretamente, mas para o grupo, sua família, seu país e definitivamente para a construção de um mundo melhor.
Como El Sistema influencia corações e sonhos de crianças e jovens venezuelanos?
El Sistema não possui uma varinha mágica que permita que as crianças alcancem seus objetivos e metas. Ele é apenas a concretização do sonho de um homem, o maestro José Antônio Abreu, e graças à perseverança deste ser humano o projeto converteu-se em algo real.
Estive em países onde me disseram que somos uma instituição que cria falsas expectativas nas crianças, que os enganam com o sonho de tocar um instrumento pois esta criança se ilude e provavelmente jamais chegará a ser um profissional da música.
Pois devo dizer que quem trabalha hoje nesta instituição aprendeu e cresceu com o exemplo do maestro Abreu. Nada é perfeito. Um sonho sem ação não é nada mais do que uma ilusão, nosso universo imediato sempre vai ser consequência da nossa capacidade de modificá-lo com nossas ações.
Quero finalizar com uma pergunta: Como não tocar o coração de milhares de jovens ao ver a fortaleza e decidida ação deste grande ser humano? É ou não é o exemplo a melhor maneira de ensinar?