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A transformação que vem pela música

Por Monica Ramalho*

Conhecida no mundo inteiro pela performance intensa e técnica impecável, geralmente à serviço das obras de Bach, Prokofiev e Rachmaninoff, a mineira Simone Leitão, nascida há 44 anos em Caratinga, é uma das estrelas do documentário “Pare, olhe, escute”, dirigido por Katia Lund. O filme acaba de ser lançado no canal Arte 1 e cobre a turnê que Simone fez por cinco cidades do país ao lado dos jovens da Orquestra Sinfônica de Barra Mansa. Localizada no Sul fluminense, Barra Mansa vem sendo apontada como um novo celeiro da música de concerto brasileira em virtude do projeto Música nas Escolas. Rigorosamente, todas as escolas da cidade oferecem aulas de música de altíssimo nível aos seus alunos. Simone se aproximou da orquestra há seis anos e, desde então, sonhava em mostrar o trabalho deles para o mundo.

Comprometida com a temática da educação musical, Simone vem divulgando a música erudita nacional nos Estados Unidos, através do projeto Brasil Classical Series, criado em 2009, no mesmo ano do Brasil de Tuhu. A renda obtida com a venda de ingressos é revertida para a compra de instrumentos musicais que são doados a projetos voltados para a inclusão social por intermédio da música de concerto. Simone também está à frente de programas que democratizam o acesso à música clássica brasileira, como a Academia Jovem Concertante e duas Semanas Internacionais de Música de Câmara: do Rio de Janeiro e de Belo Horizonte. Ao longo do ano, vamos noticiar as ações educativas da pianista, que nos deu essa saborosa entrevista sobre o documentário “Pare, olhe, escute”:

BRASIL DE TUHU – Como surgiu a ideia do documentário “Pare, olhe, escute”?
SIMONE LEITÃO – O documentário, na verdade, foi sugestão do patrocinador, o presidente da Telefônica, Antônio Carlos Valente. Bolei uma turnê para me apresentar em oito cidades com a Orquestra Sinfônica de Barra Mansa, coloquei na Lei Rouanet e levei o projeto para ele. Ele se encantou justamente porque estava ligado a um projeto de educação musical nas escolas públicas. Aprovou um orçamento para cinco cidades (Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre e Recife) e, no meio do caminho, nos trouxe essa ideia do filme. Convidamos a Laís Bodanski para realizá-lo e ela, por sua vez, chamou a Katia Lund para dirigir. O filme é sobre a minha turnê com a orquestra.

TUHU – Por que escolheram o projeto Música nas Escolas em Barra Mansa, especificamente?
SIMONE – Tenho uma relação com a Orquestra Sinfônica de Barra Mansa desde 2008. O filme mostra bem isso. Morava nos Estados Unidos e dividia o meu tempo entre o doutorado e as aulas que ministrava na universidade. Um dia fui convidada para tocar com a orquestra como solista. Nunca havia escutado falar deles, mas, a partir do primeiro encontro, sou encantada com o projeto por causa da democratização da música que ele traz. E fiquei muito animada em fazer essa turnê porque o Brasil não conhecia eles.

TUHU – E você já estava totalmente envolvida com a educação musical…
SIMONE – Totalmente. Quando a gente fala em educar, é educar todo mundo: a pessoa que vai ao concerto, o próprio músico que precisa estudar mais para tocar ao vivo e também o patrocinador. Muitos deles não sabem o valor da música clássica como elemento de transformação. Alguns pensam que é música para as elites, quando não existe esse limite. Um documentário como o ‘Pare, olhe, escute’ vale muito para deixar isso bem claro.

TUHU – Como nasceu o nome “Pare, olhe, escute”?
SIMONE – Foi por causa do trem que passa em frente aos ensaios da orquestra e a gente tem que parar tudo por causa do barulho. Essas locomotivas carregam o minério de Minas Gerais para a CSN. Na linha do trem, existe essa sinalização: Pare, olhe, escute.

TUHU – Como a orquestra e os alunos reagiram à presença de uma equipe de cinema?
SIMONE – Achamos um pouco difícil por um lado, apesar de o resultado ser maravilhoso. Em São Paulo, por exemplo, havia cinco câmeras apontadas para nós. No concerto de Belo Horizonte, colocaram uma câmera andando entre os músicos. A equipe viajou conosco, acompanhou os ensaios, os concertos. Foi um esquema bem “on the road” (“na estrada”, em bom português) mesmo.

TUHU – Como é ver a mudança que a música traz para as vidas de tantos jovens com poucos recursos?
SIMONE – O filme conta, mais de perto, a história de dois personagens. Um é o Iago, de 22 anos, que já atua como monitor do projeto e dá aulas particulares de violino, além de tocar na orquestra. Ele é neto de uma catadora de lixo e começou a ter aulas na escola, junto com o irmão, mas demonstrou mais aptidão. O irmão virou motoboy para sustentar a casa e dar a ele condições de estudar violino – porque o instrumento virou o mecanismo de ascensão social da família. E o Iago é professor da Jade, a outra personagem, que olha para ele com aquela admiração de aprendiz. Isso eu acho interessante demais na educação musical: Você cria novos heróis na periferia. O Iago é, sem sombra de dúvida, o herói dessa menina.

TUHU – O que o público tem comentado sobre o longa?
SIMONE – Todo mundo que assiste ao filme fica muito tocado porque essa história da educação musical em Barra Mansa é maravilhosa. E pensar que o projeto quase acabou recentemente por questões políticas. O que convenceu o prefeito a continuar foram as mães dos alunos. Elas foram lá reivindicar: “Você quer tirar o violino do meu filho? Do jeito que o mundo está, sabe-se lá o que podem querer colocar nas mãos dele!”. E o prefeito se sensibilizou com o apelo. Essas mães se uniram com um outro argumento muito forte: a música melhorou o rendimento escolar das crianças. Todas as escolas de Barra Mansa oferecem educação musical para valer. Boa parte desses alunos saem da escola aptos a tocar numa orquestra de verdade.

TUHU – E qual é a proximidade do projeto com a orquestra?
SIMONE – Os músicos das orquestras são monitores das escolas. Outro dia dei uma aula na pós-graduação da faculdade de música de Barra Mansa e soube que a maioria dos jovens é monitor das escolas públicas da região. A coisa está crescendo. Barra do Piraí e Volta Redonda já são considerados novos celeiros da música de concerto. E esses jovens estão se mudando para outras cidades com orquestras, como o Espírito Santo, que recentemente aprovou novos músicos.

TUHU – Alguma cena em especial tocou você mais profundamente?
SIMONE – A Katia Lund é muito poeta. Ela pega os depoimentos das pessoas e vai montando o áudio com outras imagens. Tem uma hora que me emociona. Foi quando vi a menina dizendo o que significou para ela entrar pela primeira vez na Sala São Paulo. Ela se perguntava “por que esse lugar é tão importante?”, “por que o meu professor quer tanto tocar ali?”. E quando ela chegou e viu aquela imponência, aquele templo feito para a música sinfônica, ela ficou tão impressionada que saiu prometendo um dia tocar na Sala. Então, o que me emocionou foi ver aquele “will power” (“força de vontade”, em tradução livre) sendo acendido dentro da criança. Não podemos esquecer que uma nação é feita de histórias individuais e a vitória de uma pessoa simboliza a vitória de todas.

TUHU – O que você sente ao acompanhar esses pequenos grandes encontros com a música?
SIMONE – Vibro quando vejo uma turma de alunos andando pela cidade com seus instrumentos para as aulas ou para os ensaios. É a sensação de pertencimento. Penso que um vai ser músico, cinco ou dez vão fazer outra coisa, mas serão público da música boa, seja ela clássica ou popular. Quando estive em Barra Mansa pela primeira vez, um rapaz foi me buscar e, no caminho, a gente ouviu Mahler. Eu tinha acabado de escrever um “paper” (espécie de “artigo”) sobre um ciclo que ele compôs baseado na poesia de Rainer Maria Rilke e o menino debateu isso comigo enquanto dirigia. Ele contou que tocava trompa no projeto até perceber que não era muito bom nisso e decidir estudar administração. O fato de ter aprendido um pouco de música já impactou a vida dele para sempre. Acredito que a opção cultural seja a forma mais madura de democracia.

TUHU – E a sua carreira de pianista, Simone? Planos?
SIMONE – Muitos! Esse ano promete, com meus tantos projetos, entre eles o Brasil Classical Series, a ser realizado no Knight Hall, em Miami, e no Carnegie Hall, em Nova York. Quem quiser saber mais, pode visitar o meu site (www.simoneleitao.com). Não aceito aquele discurso de ‘não dá pra viver de música no Brasil’. Acho escapismo, atitude pequena e de gente desinformada. Porque é difícil viver de qualquer coisa, em qualquer lugar do mundo e em qualquer época. Eu saí do Brasil por alguns anos em busca da minha formação, não foi um exílio profissional. Felizmente, posso dizer que estou vivendo no meu país a minha maturidade artística. E também posso dizer que a minha carreira é um pouco produto das leis de incentivo brasileiras. Tenho muito orgulho disso porque assim como a aristocracia vienense sustentou Beethoven e a aristocracia carioca, no caso a família Guinle, sustentou Villa-Lobos, eu trabalho bastante graças ao nosso sistema de leis e patrocinadores. E olhe que eu nem sou genial como Villa-Lobos e Beethoven (risos).

TUHU – “Pare, olhe, escute” ainda será lançado nos cinemas ou foi criado para ser exibido em canais pagos e, depois, vendido em DVD?
SIMONE – A turnê documentada aconteceu em outubro e novembro de 2013, o filme ficou pronto em fevereiro desse ano, e foi lançado agorinha mesmo, em abril. Nos primeiros seis meses, o documentário será exclusivo do canal Arte 1, que é bem voltado para a cultura. Depois, queremos que ele seja visto por multidões na TV aberta. Também estamos inscrevendo o “Pare, olhe, escute” em festivais porque acreditamos muito nesse documentário e queremos mais é que ele circule.

* Jornalista e escritora, é autora do livro infantojuvenil Cartola, da coleção Mestres da Música no Brasil (Editora Moderna, 2004), codiretora e roteirista do documentário Raphael Rabello (Canal Brasil, 2005) e dona da Belmira Comunicação. Para saber mais, visite www.monicaramalho.com.br

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